Assim como dietas restritivas e aca- demias lotadas viram rotina, as injeções emagrecedoras como Ozempic, Wegovy e Mounjaro se espalham rapidamente nas redes sociais, clínicas estéticas e consultórios. Criadas para tratar diabetes tipo 2 e posteriormente testadas no tratamento da obesidade grave, essas substâncias viraram um atalho perigoso para a obsessão pelo corpo magro. O consumo cresceu tanto que, em abril, a Anvisa passou a exigir a retenção da receita médica. O aumento nas vendas foi estrondoso: mais de 660% em seis anos. Nessa corrida por resultados rápidos, floresceram o comércio ilegal, im- portações irregulares, assaltos a farmácias e, claro, saúde afundada pela promessa do milagre dos cinco quilos a menos.
Promessa letal
O marketing é tão pesado que de medicamento para diabetes, o Ozen- pic, o Wegovy (ambos à base de semaglutida) e, mais recentemente, o Mounjaro (à base de tirzepatida) pas- saram a ser chamados de apenas canetas emagrecedoras, um suposto produtos simples de ser usado: “basta uma picadinha na barriga e todos os seus problemas com a balança serão resolvidos”, essa é a promessa. E ela vai além, garante que você vai caber no manequim vislumbrado ou se preparar para o verão, tudo isso sem mudanças de hábito, sem acompanhamento médico e em poucos dias, quase que instantaneamente. Uma promessa irrecusável, em tempos de imediatismo e obsessão estética.
O lado oculto do apelo
Para muitos, a promessa é cumprida. E a lógica por trás desse emagrecimento é a atuação da semaglutida ou da tirzepatida, que atuam regulando a sensação de sacie- dade e reduz o apetite. Mas, apesar dos resultados e do marketing sedutor, os efeitos dessas drogas não são simples. Insônia, taquicardia, pressão alta e até risco aumentado de câncer de tireoide são efeitos documentados. Há ainda relatos de perda de massa magra, náuseas, vômitos, diarreia. E, em casos mais graves, os medicamentos podem aumentar em até nove vezes o risco de pancreatite, além de problemas renais e gastrointestinais. A promessa também pode voltar atrás, porque estudos já apontam que cerca de 50% das pessoas voltam a engordar após interromper o uso (algumas ganhando até 9,7 kg a mais), isso cria uma dependência medicamentosa que só alimenta a um mercado bilionário.
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O efeito rebote e a frustração
O emagrecimento rápido vem acompanhado do retorno do peso. “Esses medicamentos não são para uso estético. Quando pessoas saudáveis param de usar, o apetite aumenta e a gordura volta. Isso gera frustração e o ciclo de reuso, que é perigoso para a saúde”, explica a endocrinologista Maria Creuza Rolim. Por isso que o uso desses medicamentos para perda de peso, por questões estéticas, está fora das indicações aprovadas cientificamente. Mas muitos médicos, pressionados por pacientes e pela cultura da estética corporal, acabam prescrevendo para pessoas sem obesidade clínica.
Engordando contas bancárias
Enquanto esses efeitos colaterais se somam aos estudos sobre o uso das canetas emagrecedoras, o saldo positivo parece ficar apenas com as farmacêuticas, que já controlam medicamentos essenciais e agora comemoram também receitas bilionárias estimuladas pela obsessão por corpos magros. A dinamarquesa Novo Nordisk, fabricante do Ozempic e Wegovy, foi eleita a empresa mais valiosa da Europa em 2023. Ela faturou US$ 45 bilhões em 2024 e já anunciou investimento de mais de R$ 6 bilhões no Brasil este ano. A Eli Lilly, responsável pelo Mounjaro, também segue entre as empresas mais valiosas do mercado após o sucesso de seu medicamento, que vem sendo apresentado como a “nova geração das canetas emagrecedoras” com “resultados mais agressivos”.
Mounjaro à solta
Mesmo diante de uma regulamentação que ainda engatinha rumo ao controle do uso desses medicamentos, a Anvisa liberou em maio a venda do Mounjaro nas farmácias. Antes disso, ele só era permitido a quem trazia de fora do país para uso próprio. Com um marketing agressivo, o produto já chegou com preços mais baratos do que o esperado. A própria farmacêutica americana já havia divulgado a estratégia de competitividade. Agora, a canetinha está disponível até em aplicativos de entregas para compra nas farmácias.
Legislação atrasada e fiscalização falha
Nessa regulamentação que caminha a passos curtos e por vezes até retrocede, a Anvisa só recentemente passou a exigir receita retida para venda. Antes disso, o comércio era quase livre. Até clínicas estéticas faziam a venda clandestina dos medicamentos, uma delas em Vitória da Conquista chegou, inclusive, a ser notificada. A legislação tenta acompanhar uma moda que cresce muito rápido, mas ainda é lenta e permissiva diante da urgência.
Aliados de consultório
A conivência de profissionais da saúde e influenciadores é um outro fator que alimenta o uso banalizado das canetas.Redes sociais se tornaram vitrines para transformações relâmpago promovidas por medicamentos que, em teoria, deveriam ser usados com cautela e acompanhamento médico. Mas a saúde virou negócio, a magreza virou mercadoria, e o consumidor, cobaia.
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Até o mercado ilegal engorda
Com preços que ultrapassam R$ 2 mil por caneta, o mercado clandestino prospera. Em cidades baianas, farmácias viraram alvo de assaltos por causa das canetas. No Aeroporto de Salvador, a Receita já apreendeu centenas delas em 2025. Pacientes desinformados acabam comprando até produtos falsificados que colocam a saúde em risco. A média de preço também levanta uma outra discussão: o recorte social. Apenas uma parcela da população tem acesso regular a essas canetas. O resultado é uma elite magra e injetada e enquanto os mais pobres enfrentam os desafios da obesidade sem qualquer apoio estruturado.
Remédio como solução para tudo
Essa explosão das canetas expõem não só a sede das farmacêuticas, mas também a medicalização do corpo - e da autoestima. Pílulas, injeções e até gummys para solucionar qualquer problema. E isso vem em detrimento de discussões sobre o acesso a alimentos saudáveis, a prática de atividade física, o bem-estar emocional e as desigualdades sociais que contribuem para o ganho de peso. Um remédio caro e com efeitos colaterais sérios acaba substituindo políticas públicas e educação. Emagrecer, claro, pode ser legítimo, mas não deve ser uma armadilha que coloca o próprio corpo em risco. Mais do que uma questão de balança, o uso indiscriminado das canetas emagrecedoras é pautado em modelo perverso que se aproveita de falhas éticas e sanitárias para transformar sofrimento em lucro e insegurança em oportunidade de negócio.