Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 28 de setembro de 2023
Já se passaram exatos 2.225 dias desde a maior tragédia marítima da Baía de Todos-os-Santos. Foi na manhã de 24 de agosto de 2017 que a lancha Cavalo Marinho I naufragou e deixou 19 pessoas mortas. De lá até aqui, já se formam as ondas, embarcações, a atenção dada ao caso e seis arrastados anos. Mas ficaram na praia os sobreviventes e as famílias das vítimas, com o luto, a sensação de impunidade, um ciclo que não consegue ser fechado e a briga de braço com o sistema judiciário. Não é à toa que Morosidade e Justiça já são palavras íntimas no Brasil. Uma quase que completa a outra. Na Bahia talvez trocássemos para lenta, lerda, arrastada, tudo isso para chegar a uma mesma conclusão: o Poder Judiciário tem falhado com a população.
Em 2017, ano da tragédia na Baía de Todos-os-Santos, a Defensoria Pública do Estado (DPE) ajuizou 46 ações contra a Agerba (Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia) e a empresa dona da embarcação, a CL Transportes Marítimos. Dos 41 casos que ficaram na comarca de Itaparica, a maioria está pronto para ser julgado desde 2019, mas ainda não houve a sentença de indenização. Segundo a defensora pública Soraia Ramos, que coordenava a força- -tarefa criada para atuar no caso, o motivo para esse arrastar é um conflito entre a Justiça Federal e a Estadual. “A empresa, na época, entrou com um recurso dizendo que era para incluir a União. O TJ [Tribunal de Justiça da Bahia] entendeu que era necessário incluir e enviou para a Justiça Federal, que, por sua vez, disse que a defensoria poderia escolher. Quando há esse tipo de conflito, cabe ao STJ [Superior Tribunal de Justiça] decidir quem vai julgar os processos. O juiz está aguardando essa decisão, até agora ele não julgou nenhum dos processo”, conta a defensora ao Jornal Metropole.
Descrédito e impunidade
A espera dos familiares e sobreviventes do acidente da Cavalo Marinho não é solitária. A morosidade da Justiça baiana atinge a muitos. Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a média de tempo entre o início do processo e a primeira baixa no TJ-BA é de quase três anos (1.036 dias), são quase 1,5 milhão de processos sem movimentação há mais de 50 dias. O número é superior à média nacional, que é de dois anos e meio para a primeira baixa.
Os efeitos disso não são apenas individuais. Não são apenas os familiares e sobreviventes das vítimas da tragédia Cavalo Marinho que não têm a oportunidade de cessar um ciclo e lidar com o luto de uma outra forma. Se fosse, já seria digno de alerta, mas a sociedade como um todo também é afetada. Presidente da Comissão Especial de Celeridade Processual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), Saulo Guimarães não tem dúvidas de que o reflexo dessa morosidade recai sobre o próprio sistema judiciário, que passa a ser visto com descrédito. “Mas, além disso, traz também uma sensação de impunidade, porque a Justiça é muito lenta para julgar principalmente os casos criminais”, afirma.
Não faltam casos que exemplificam isso. O leitor do Jornal Metropole deve ter ainda fresco na memória o nome do líder espiritual Jair Tércio Cunha Costa, que se auto intitulava a reencarnação de Jesus. O falso guru é considerado foragido desde 2020, quando foi expedido um mandado de prisão contra ele. Puxadas pela denúncia da pedagoga Tatiana Badaró, 14 mulheres o acusaram por crimes de natureza sexual. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) chegou a oferecer duas denúncias contra ele. A última delas tipificava os crimes de estupro com promessa de “cura gay” e o agravante de charlatanismo. De lá para cá já se passaram três anos. Segundo o TJ, ainda está sendo aguardado o cumprimento de diligências solicitadas no 1º Grau da Justiça baiana para que o 2º Grau finalmente dê prosseguimento ao rito processual. Enquanto isso, Jair Tércio permanece foragido e as vítimas, presas ao medo e a ciclos que não conseguem encerrar.
Foto: Reprodução
Cinquenta condenados em três anos
E mais uma vez, elas estão sozinhas nesses índices. Um levantamento feito para o Jornal Metropole em agosto já havia mostrado que das 455 denúncias de feminicídio registradas pelo MP-BA, entre 2020 e o primeiro semestre de 2023, em apenas 50 houve condenação, segundo dados do TJ-BA. É como se a cada nove casos, apenas um tivesse punição. Os outros são absolvidos ou sequer julgados. A fisioterapeuta Isabela Conde conseguiu sair desses números, mas penou muito para isso.
Ela foi atacada com golpes de faca por seu ex-namorado em 2019. Precisou fingir estar morta para sobreviver, mas sua luta não acabou ali. Foram três anos esperando a resposta ser dada pela Justiça. Quando tudo parecia que tinha chegado ao fim, o júri popular do seu agressor foi desmarcado. Acabou acontecendo em agosto do ano passado e ele foi condenado a 23 anos de prisão. Mas depois, mais um motivo para que Isabela retomasse seu pesadelo: a pena foi reduzida para 12 anos e meio em regime semiaberto.
“E tem muitos outros casos que acompanho da mesma forma. Tem um que júri popular já foi remarcado cinco vezes. Cada hora, é um motivo diferente. Passa mil coisas pela nossa cabeça. Será que é a Justiça sendo conivente com o agressor? É uma inquietude muito grande vendo a injustiça acontecendo na nossa frente e nós de mãos atadas. Não tem como fechar o ciclo, é o tempo todo criando expectativa de uma resolução”, conta Isabela.
De dentro dos gabinetes de juízes
São recursos, pedidos de anulação e uma série de estratégias, que muitas vezes a vítima sequer entende o que significa, mas sabe que vai adiar o fim do caso. É o próprio rito processual que permite esse arrastar da Justiça. Juiz titular da Comarca de Senhor do Bonfim e um dos diretores de comunicação da Associação dos Magistrados da Bahia (Amab), Tardelli Boaventura reconhece essa morosidade. Para ele, é óbvio, não tem como tapar o sol com a peneira. Mas ele acredita também que esse é um problema enfrentado não só pela Bahia.
“Infelizmente o Código de Processo - e aqui falo do Código Civil e Penal - prevê uma série de recursos. E quando a parte tem bons advogados, eles conseguem arrastar esse processo por muitos e muitos anos. São uma série de incidentes processuais que a legislação prevê e o advogado acaba, dentro do seu papel, utilizando e arrastando esse processo por muito anos. A legislação carece de simplificar”, aponta. Mas não é só isso. Para Boaventura, os juízes de 1° Grau também estão sobrecarregados de processos. De acordo com ele, a média por magistrado de primeira instância na Bahia é de 6 mil casos para análise e um assessor. A solução para ele seria dar mais estrutura a esse segmento, o que acaba esbarrando em questões orçamentárias. Juntos, o TJ-BA e o TRE-BA já somam ao estado uma despesa de quase R$ 5 bilhões, com quase 90% disso voltado para a área de recursos humanos.
Falta muito para chegar à população
Há quem diga que os gabinetes abarrotados dos juizes e a consequente morosidade estão relacionados a um maior acesso à Justiça. Mas essa, na verdade, é uma perspectiva de quem só consegue enxergar os números de identificação dos processos. Porque, na verdade, o Poder Judiciário ainda está no início de uma longa caminhada até chegar a toda a população. Quem de fato tem amplo acesso a ele são os poderes públicos, autarquias e grandes empresas. Os 20 maiores autores de litígios na Justiça baiana representam quase 40% dos casos e são formados por municípios - como o de Salvador e o de Camaçari, que são os maiores autores -, MP-BA, governo do estado e instituições financeiras.
“Todos são iguais perante a lei”. A força e popularização dessa frase não são à toa. Justiça tem muitos conceitos e em todos eles - do mais básico ao mais complexo -, há o princípio da igualdade. Mas se nem todos têm acesso a ela, não há Justiça. Ou pelo menos, - perdoem-nos pelo pleonasmo - não há uma Justiça justa.
Na OAB-BA, por exemplo, entre as mais de 100 comissões apenas uma trata do acesso à Justiça a pessoas em vulnerabilidade social. É a Comissão Especial de Estudos em Assistência Judiciária Gratuita e Perícias Forenses, mas, como o próprio nome diz, não é exclusiva para esse assunto e também não extrapola a teoria. Na prática, com os mais de 58 mil advogados do estado, a Ordem não conta com um setor ou atividade de atendimento a esse público. Fica nas mãos de Organizações Não Governamentais (Ongs) e da DPE esse tipo de trabalho. Mas atualmente a Bahia tem apenas 407 defensores que só conseguem atender a 22,2% das comarcas do estado. No final das contas, para quem existe a Justiça?
Por Metro '