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ESPECIAL - 05/12/2018

Psicólogo defende mudanças políticas e culturais relacionadas ao consumo de álcool

Psicólogo defende mudanças políticas e culturais relacionadas ao consumo de álcool

O Brasil celebra, em 9 de dezembro, o Dia do Alcoólico Recuperado. Apesar de pouco conhecida, a data é importante para comemorar a vitória das pessoas que conseguiram superar o alcoolismo. Ainda assim, a atenção deve ser diária e permanente para que a dependência não retorne.

 

"Nosso organismo tem uma memória neurológica. Mesmo que a pessoa pare de beber por cinco anos, quando ela volta a beber, é como se não tivesse parado. Com três ou quatro dias, já está no mesmo nível de consumo de quando parou. Quando a pessoa retorna, a dependência se instaura rapidamente", alertou o psicólogo Ricardo Melo, coordenador do Centro de Acolhimento e Tratamento de Alcoolistas (Cata), das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, ele lembrou que um dos passos do grupo Alcoólicos Anônimos (AA) é "por hoje eu não vou beber", justamente pela necessidade de manutenção do tratamento.

 

Para o profissional, é importante evidenciar os riscos e prejuízos relacionados ao álcool, da mesma forma que são realizadas campanhas contra o uso de cigarro. "A gente precisa evidenciar um pouco mais isso por mudanças políticas e culturais de consumo. A gente vê a política antitabaco. Nos últimos 15 anos, houve uma política de restrição do consumo, aumento de imposto e isso realmente teve um efeito positivo, principalmente no Nordeste. Com esse controle, melhora a qualidade de saúde da população", ressaltou.

 

Na entrevista, Melo falou ainda sobre os primeiros sinais de que o consumo de álcool se tornou um problema, os riscos relacionados ao consumo abusivo e as bases do tratamento para controle do alcoolismo.

 

Quando o consumo de álcool começa a representar um problema?

A gente tem vários tipos de uso problemático do álcool. O primeiro uso perigoso de álcool é quando ele é abusivo. Mesmo que a pessoa não tenha uma dependência ou uso contínuo do álcool - principalmente o jovem, quando começa a beber muito cedo - quando há exagero em uma noite, já pode apresentar risco à saúde. Ressalto o caso do jovem porque ele tem uma inexperiência com a substância e por causa de jogos de beber, que podem levar a um coma alcoólico. Quando a gente fala de uma situação de risco, já começa no início do consumo de álcool. Com o tempo, falando agora do adoecimento, do alcoolismo mesmo, a gente entende que a pessoa começa a perder a liberdade de escolha. Se a pessoa faz uso do álcool todo final de semana, essa é a única fonte de lazer, o único momento para relaxar, a gente já observa uma chance grande de dependência do álcool. A primeira coisa que a pessoa tem que ficar atenta é se ela está perdendo repertório de prazer, em relação a lazer. Isso se torna mais claro com os primeiros sintomas de dependência, que são tremores. Pode acontecer, depois de um exagero no final de semana, a pessoa acorda com leves tremores, que é um sinal de abstinência. Com o tempo, começa a aparecer insônia, alucinações... Quando a pessoa começa a fazer o uso do álcool para evitar a abstinência, a gente já classifica como dependência alcoólica. É comum a pessoa acordar, começar a tremer e tomar uma ou duas doses para parar a tremedeira.

 

Quais são os riscos para a saúde do paciente com o consumo abusivo de álcool?

Com o tempo, nosso organismo se adapta ao consumo da substância, então a primeira questão que provoca é uma mudança fisiológica. O organismo passa a entender que precisa do álcool para se manter estável. Isso já é uma mudança fisiológica importante que caracteriza a dependência. Não é um vício ou um problema de caráter. A dependência é quando ocorre essa modificação no organismo. Se a pessoa não faz o uso da bebida, tem insônia, tremores, mau humor, pode ter alucinações, crise convulsiva... A gente está falando da abstinência, quando a pessoa está com um grau diário de consumo muito intenso. A gente ouve falar bastante da cirrose nos casos de alcoolismo crônico. O álcool também retira vitamina B do organismo, ele para de absorver. É uma vitamina importante que provoca o déficit dos três Ds: desnutrição, uma dermatose que a gente chama de pelagra e demência provocada pelo álcool, que parece a demência por idade. Isso aparece depois de 15 ou 20 anos de consumo de álcool. É possível também apresentar problemas cardíacos, impotência sexual - o álcool tira testosterona do organismo. A impotência já leva a um outro problema, que a gente chama de síndrome do ciúme alcoólico. A pessoa perde o desejo, passa mais tempo no uso da substância do que no relacionamento e começa a fantasiar que é traído. Isso é uma síndrome que provoca problemas de relacionamento, inclusive agressões. O álcool está relacionado a vários problemas de saúde, mas também a perdas sociais.

 

É possível para uma pessoa do convívio perceber esses sintomas?

As pessoas percebem pelo repertório. Se o outro passa a ter como única fonte de prazer o álcool, as pessoas que estão em volta percebem. Para começar, em todo final de semana começa a fazer uso abusivo do álcool, não moderado. A pessoa normalmente troca a cerveja por destilado, que tem um custo mais baixo. Os familiares e pessoas mais próximas podem perceber e sinalizar. A questão é que as pessoas acabam encontrando colegas e pares para fazer uso junto. Aqui em Salvador, nas camadas populares, a gente tem um grupo que se chama Sindicato. São grupos de pessoas que se reúnem para beber. São pessoas em situação de rua, pescadores, trabalhadores da construção civil. Eles fazem "os corres", cada um pega R$ 2 ou R$ 3 e compram as bombinhas, a cachaça. Esse companheirismo do álcool também é um complicador.

 

 

A decisão de buscar um profissional para um tratamento precisa ser do paciente ou é bem-vinda uma intervenção de familiares e pessoas próximas?

Lá no Cata, por exemplo, a gente tem duas formas de tratamento: ambulatorial e internação. A internação tem o objetivo de fazer a desintoxicação. A gente só faz atendimento voluntário. É muito importante que a pessoa supere uma fase da dependência que a gente chama de negação. Normalmente, quando a pessoa está nessa fase da negação, ela minimiza, brinca com o problema... Começa a dizer que vai beber porque está frio, está calor, porque vai encontrar os amigos... Primeiro, a pessoa sempre minimiza, nega e só vai procurar ajuda quando já tem um prejuízo. É importante que quem está em volta tente sinalizar para essa pessoa, isso já é uma ajuda. O importante é que seja uma busca do sujeito para alterar essas modificações que o álcool provocou nele, o que não é fácil.

 

Quais são as bases do tratamento?

Atualmente, a gente trabalha com uso da medicação, que vai atuar na área que o álcool atua no organismo, o sistema nervoso. A medicação tenta minimizar as alterações provocadas pelo álcool. São ansiolíticos, para a pessoa conseguir dormir, anticonvulsivantes e vitamina do complexo B. Junto com a parte medicamentosa, é importante também uma terapia, para a pessoa entender qual a função do álcool na vida dela e como ela pode substituir esse prazer. A terapia pode ser uma escolha da pessoa, entre psicólogo, igreja, AA... A pessoa tem que perceber com qual modalidade terapêutica ela se identifica.

 

O paciente precisa manter esse tratamento para o resto da vida?

É um tratamento de longo prazo. Assim como a dependência é gradativa e se instaura lentamente, para retirar, é gradativo também. A gente fala como se fosse o tratamento de uma doença crônica. Ainda mais por ser uma droga legal, em cada esquina tem alguém oferecendo bebida alcoólica. A gente não determina tempo para parar, é o sujeito que percebe que não precisa mais da terapia e da medicação para se manter afastado do uso da bebida. A questão é que nosso organismo tem uma memória neurológica. Mesmo que a pessoa pare de beber por cinco anos, quando ela volta a beber, é como se não tivesse parado. Com três ou quatro dias, já está no mesmo nível de consumo de quando parou. Quando a pessoa retorna, a dependência se instaura rapidamente.

 

Depois de um tratamento, uma única dose pode levar a essa recaída?

Pode, porque é isso, nosso organismo tem uma memória e reinstaura a dependência rapidamente. Por isso que o AA, por exemplo, tem 12 passos e um deles é "por hoje eu não vou beber". Todos os dias eles lembram isso. Quando a pessoa reutiliza o álcool, logo vem a vontade de beber uma quantidade maior. Quando a gente começa a fazer uso de álcool, dois ou três copos de cerveja nos deixam satisfeitos. Com o tempo, é preciso um consumo cada vez maior, a gente adquire tolerância. As pessoas que fazem esse consumo intenso chegam a beber um litro de cachaça por dia. Mesmo que fique anos sem beber, quando voltam, em dois ou três dias já bebem um litro de álcool por dia. É um tratamento realmente a longo prazo e a gente recomenda que seja contínuo.

 

 

Nós temos drogas consideradas muito mais fortes que o álcool. No entanto, o álcool é legalizado e socialmente aceito. Isso torna possível uma comparação entre o álcool e outras drogas?

É uma comparação complicada. São vários fatores, é difícil comparar o álcool com drogas ilícitas, até pela forma de comercialização. Foi publicada uma pesquisa na Inglaterra, com a classificação do uso de drogas, relacionando o prejuízo individual para a saúde e o prejuízo social. Essa pesquisa classificou o álcool como a pior droga justamente pelo consumo legalizado. Aqui no Brasil a gente tem pesquisas que avaliam o consumo de drogas em geral, e o álcool é a droga de maior consumo. A gente tem cerca de 10% da população em geral que é dependente do uso de álcool. São mais de oito doses semanais. Comparando com outras drogas, a gente tem uma epidemia de consumo de álcool. Se comparar com o consumo de crack, por exemplo, menos de 1% da população faz uso, porém é uma população marginalizada. O crack chama atenção pela violência que está em volta e é uma droga que provoca dependência muito rápida. Ainda assim, o álcool tem um prejuízo a longo prazo. Em saúde pública, há muitos gastos relacionados ao uso do álcool. Se a gente for falar também de problemas no trânsito, violência doméstica, absenteísmo no trabalho, acidentes no trabalho, há uma série de prejuízos sociais que o álcool provoca. A gente tem isso em menor quantidade no caso das outras substâncias, já que há menor consumo. É uma comparação complicada.

 

O centro já esta agora com 24 anos de trabalho, certo? Queria que o senhor me explicasse como é o funcionamento e como os pacientes podem ter acesso.

O Cata funciona no Hospital Santo Antônio, em Roma. A gente trabalha com porta aberta e é 100% SUS. O paciente só precisa chegar, e o atendimento é por ordem de chegada. A gente tem duas modalidades de tratamento: a enfermaria para desintoxicação - são 33 leitos masculinos para maiores de 18 anos - e o tratamento ambulatorial, para ambos os sexos. A gente tem procura para internação feminina, mas não tem estrutura para isso. Quando foi planejada, a enfermaria era só masculina porque o índice de homens com dependência era maior. No tratamento ambulatorial, o paciente vai ser acompanhado por uma equipe multidisciplinar, com acompanhamento medicamentoso, psicólogo, terapeuta corporal, assistente social, musicoterapia e uma série de atividades voltadas para a manutenção e o acompanhamento, inclusive para a chamada redução de danos. A desintoxicação acontece em uma internação de curto prazo, 20 dias, voluntária. Acabando esse período, a gente encaminha o paciente para a rede de saúde mais próxima.

 

O que o senhor acha que deve ser feito para combater esse problema que é o consumo abusivo de álcool?

Eu trabalho já há muitos anos nessa área e não conhecia esse Dia do Alcoólico Recuperado. Acho que é importante a gente divulgar isso e ter esse trabalho, porque tem todo um prejuízo social por conta desse consumo, que é invisível, do álcool. A gente precisa evidenciar um pouco mais isso por mudanças políticas e culturais de consumo. A gente vê a política antitabaco. Nos últimos 15 anos, houve uma política de restrição do consumo, aumento de imposto e isso realmente teve um efeito positivo, principalmente no Nordeste. Com esse controle, melhora a qualidade de saúde da população. É preciso se pensar em uma mudança cultural e política também para o consumo de álcool. BN